Sobre “A Última Ceia”
Sendo eu o membro de um coletivo de teatro, já vivenciei mais de uma (dezena de) vez(es) a véspera do fim do meu grupo. Volta e meia, tal peça vai ser a última, tal apresentação vai ser a derradeira… assim como o gato de Schrödinger, toda sessão é e não é a nossa última, ao ponto em que isso vira parte constituinte da nossa experiência coletiva. E lá se vão 10 anos de “desse ano não passa”….
Fosse eu uma pessoa mais zen, isso me faria observar mais o presente, vivenciar o agora, entender que não há futuro, apenas o conceito de futuro, tudo muda e a impermanência é a única constante no universo, anicca e essa porra toda. Mas como eu não sou uma pessoa zen, sábado passado eu estava quebrando o pau com o diretor madrugada adentro porque eu estava insatisfeito com uma porrada de coisas. Ah, as maravilhas do trabalho em grupo…
Volta e meia, as pressões externas que mantém um grupo unido e as pressões internas que o fazem quase se desintegrar viram material poético de diversos coletivos. Foi o mote de Apossinarmológuissi, criação coletiva dos mineiros Quatroloscinco com os pernambucanos do Magiluth que investigava o fracasso individual e coletivo e a paixão pela arte como força-motriz, e é também o mote de A Última Ceia, último trabalho do MEXA.
Digo o “último trabalho” em vez de “o mais recente trabalho” do MEXA justamente porque esse é o ponto de partida (e de chegada?) da obra: após cumprida a sessão daquela peça, o grupo irá acabar.
O que fazer, então, uma vez que o problema está posto? Aproveitar a derradeira sessão e saborear o fim? Utilizar o encontro para vivissecar o grupo, expor seus choques e mapear a rota que levou o coletivo ao término? Considerar a apresentação uma plataforma para o futuro?
Como um farol lançando luz em diversas direções, o MEXA olha para o passado e o futuro, para o real e a ficção, para o luto e a celebração, o velório e a festa de aniversário, numa perspectiva agridoce, que joga luz sobre o que há de um no outro.
Na encenação de João Turchi (também dramaturgo, que divide a co-criação com Aivan, Alê Tradução, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz e Tatiane Arcanjo), a tradição de “comer o morto” — servir o prato predileto do falecido durante seu velório — ganha o mesmo tom de celebração de comer o bolo de metro no aniversário de São Paulo.
Da mesma forma, o MEXA oferece um jantar ao público, e bolo de sobremesa. Devorar é uma possibilidade de fruição, e devoramos o que o MEXA põe na mesa: o cuscuz, o frango, o vinho, o bolo, sua própria história. Uma peça de meta-teatro é, também, um exercício antropofágico.
Há algo de ritualístico nessa manobra de celebrar o velório e prantear o aniversário que não se perde na solenidade. É o senso de humor do MEXA, sua capacidade de rir da pantomima que é representar o próprio fim que dá mais fôlego à sua proposta de discutir história da arte, história da religião, a biografia de suas integrantes e as conotações políticas deste grupo fazer teatro em 2024.
É também este senso de humor que garante o contraste necessário para que o grupo fale de temas densos sem sucumbir ao peso dos tópicos abordados. Estão em pauta a miséria, a falta de perspectiva, a falta de apoio institucional, os motivos que levam as pessoas a escolher o teatro e o teatro novamente, atravessadas por questões de raça, classe, gênero e geografia.
Assim como no trabalho anterior, o grupo reafirma seu compromisso de assumir sua própria narrativa. Se em Poperópera Transatlântica o coletivo se apropriava da Ilíada de Homero para discorrer sobre as próprias odisseias, e para desafiar aos deuses ao tomar nas mãos as rédeas de seus destinos (“isso não é uma tragédia grega”, diz o espetáculo), em A Última Ceia elas e eles querem definir qual será a imagem que deixarão para o mundo.
Pense no quadro de Da Vinci. Quem são as pessoas que serviram de modelos para a pintura? Quais são seus nomes? Quais são suas histórias? Qual controle tiveram sobre suas imagens, após serem fundidos irremediavelmente aos apóstolos e messias? Uma obra de arte tem o poder de alçar alguém à quase-imortalidade, às custas do apagamento de sua identidade? O preço da quase eternidade é o de se tornar uma tábula quase rasa, onde acadêmicos, historiadores, marchands, teóricos e apreciadores possam projetar suas teorias? O MEXA está disposto a pagar este preço?
A ação de montar uma obra de arte que é inspirada numa obra de arte, às vésperas de encerrar um coletivo artístico também discute, então, não só o que a arte nos dá (artistas e público), mas o que ela exige de nós. Discutir o porque de encerrar o MEXA e o porque de continuar com o MEXA, mais do que um gatilho dramatúrgico metalinguístico, é a possibilidade de apresentar 6 perspectivas diferentes sobre o que a arte significa para estas pessoas.
Não a visão romantizada, não a versão meritocrática, coachística, neoliberal do sucesso individual devido ao talento ou ao esforço, não a história à la A Procura da Felicidade de “ensaie enquanto eles dormem”, mas uma história mais crua, honesta, de quem se vê nas contradições do mercado da arte, à mercê de curadores, programadores, patrocinadores e que precisa continuar vivendo e pagando os boletos, dando conta da vida entre uma turnê europeia e uma apresentação num festival bienal.
Qual a função da arte, então, no dia a dia das pessoas? E discutir a função da arte não é uma pergunta essencialmente capitalista? Existe função para a arte? Quais são as políticas que possibilitam a arte acontecer, e os artistas de viver? Que tipos de artes acompanharam os/as integrantes do MEXA em suas jornadas, fomentaram seus imaginários, excitaram suas sensibilidades até que chegassem aqui, em A Última Ceia, e quais imaginários e sensibilidades podem ser acessados por esta peça?
O que o mundo perde com um grupo de teatro a menos? O que o mundo perde com este grupo de teatro a menos? E o mercado? E estes e estas artistas? Que marca o MEXA deixa ao marcar seu fim? Que marca ele deixa ao continuar?
Claro, não há resposta definitiva para nenhuma das perguntas acima. Não interessa ao MEXA sanar as dúvidas que sua peça levanta, assim como não há leitura única para qualquer obra de arte, da Santa Ceia de Da Vinci ao Comedian, de Maurizio Cattelan e à decisão de Justin Sun de comê-lo (pode ser considerado uma performance o ato de destruir uma obra de arte, ainda que seja uma altamente reprodutível?); do Ecce Homo original de Elías García Martínez ao Ecce Homo restaurado pela Cecilia Gimenez (minha obra contemporânea predileta, juro). Mas estas perguntas — e tantas outras — mantém o trabalho fervilhando.
Nesse tipo de rito fúnebre com festa de aniversário e teste de elenco pra Judas,o MEXA, me parece, usa o fim como artifício para falar da experiência em si de estar vivo, e como a arte impulsiona a vida que impulsiona a arte que impuls…
Como no rito católico, o MEXA faz um ato de transubstanciação: transforma a biografia em arte e a arte em biografia, e oferece ambas (que são, neste espetáculo, a mesma coisa e seu antônimo) como quem diz “este é meu corpo: tomai, todos e comê-lo. Fazei isso em memória de mim.” Eis o mistério da fé.
A Última Ceia esteve em cartaz na Casa do Povo entre 17 de outubro e 03 de novembro de 2024.
Criação: MEXA
Direção e dramaturgia: João Turchi
Performance e co-criação: Aivan, Alê Tradução, Dourado, Patrícia Borges, Suzy Muniz e Tatiane Arcanjo
Vídeo performer, criação de vídeo e direção técnica: Laysa Elias
Assistência de direção e de movimento e performance: Lucas Heymanns
Trilha sonora, sound design e performance: Podeserdesligado
Luz e performance: Iara Izidoro
Produção executiva: Francesca Tedeschi
Produção e direção de arte: Lu Mugayar
Produção da temporada: Cibele Lima e Leonardo Monteiro
Figurino: Anuro Anuro e Cacau Francisco
Cenário: Vão
Direção vocal: Dourado
Integraram parte do processo criativo: Anita Silvia, Daniela Pinheiro e Gustavo Colombini
Colaboração dramatúrgica: Olivia Ardui
Pesquisa e consultoria artística: Guilherme Giufrida
Produção: MEXA
Coprodução: Kunstenfestivaldesarts, Casa do Povo, Kampnagel — Internationales Zentrum für Schönere Künste
Agradecimentos especiais: Esponja, Ana Druwe, Benjamin Seroussi, Marcela Amaral, Felipe Martinez