Sobre “Édipo REC”
Sófocles nos conta, e o Corifeu nos lembra, que não podemos considerar uma pessoa feliz até que ela tenha vivido o último dia de sua vida. Afinal, basta um instante para que a tragédia se instale e ressignifique o presente, o passado e o futuro.
Por isso, tem um quê de maldição, de mal agouro, quando Jocasta e DJ Édipo refazem a cena icônica de Dirty Dancing enquanto Bill Medley e Jennifer Warnes cantam I’ve had the time of my life / And I’ve searched though every open door (never felt this way) / ’Til I found the truth / And I owe it all to you… Afinal, só depois de encontrar a verdade, depois de vasculhar cada porta é que eles vão entender o que a vida deles lhes reserva — e, de fato, eles devem isso um ao outro.
Sófocles, Donald Jay Markowitz, Frankie Jon Previte e John A. Denicola (os compositores do hit dos anos 1980) têm algo em comum: todos acreditam em profecias. Sófocles conta de um Oráculo que consegue ver a história de Édipo, Laio e Jocasta antes mesmo que ela comece a se desenrolar. Markowitz, Previte e Denicola escrevem sobre o writing on the wall da história de dois amantes prestes a ter o time da life deles.
A expressão writing on the wall surge no Livro de Daniel, na Bíblia. Nele, há uma passagem em que o Rei Belsazar dá uma festa em seu palácio e, durante o festejo, um dos comensais escreve uma mensagem misteriosa em uma das paredes. O Rei convoca Daniel para interpretar a mensagem: uma profecia que anuncia a ruína do reino da Babilônia.
Basta um instante, uma informação nova, um fato apenas, para que tudo seja deslocado, mexido, visto sob novas luzes, mais cruéis e duras. Basta um instante para que a festa acabe, o reino rua, a vida seja redefinida. O Rei Belsazar descobre isso. O DJ Édipo também.
Antes da tragédia, a festa corre solta e a pista de dança fervilha. Em sua reimaginação do texto clássico Édipo Rei, o Magiluth propõe um fervo. O público bebe, conversa, dança.
Somos guiados pelo que o Corifeu, essa figura meio mestre de cerimônias de ballroom, propõe. O Corifeu é carismático e irresistível — irresistível no sentido de que não há como resistir a ele. Vemos aquilo que o Coro filma — um olhar arbitrário, cheio de recortes, de limites, de intenções, de falhas. Dançamos as músicas que o DJ Édipo bota pra tocar — tem poder maior numa festa do que controlar a playlist e ter o privilégio de dizer o ritmo e a intensidade com os quais aqueles corpos devem dançar?
Não percebemos logo de cara, mas somos o povo de Tebas, dançando a música que botam pra tocar, sujeitos aos olhares, desejos e ordens de terceiros, submissos aos regentes e aos deuses.
Somos organizados pelo play de um e pelo rec de outro. Agimos porque um manda. Somos capturados porque outro grava. Fazemos e somos vigiados, fazemos e somos vigiados. Por enquanto é só uma festa, mas o writting de que o DJ Édipo tem tendências tirânicas e de que há algo de podre no reino de Tebas tá na wall, é só olhar com atenção. É só perceber que a tragédia se avizinha, como uma tempestade que ainda não chegou, mas que já muda a umidade e enche o ar de ozônio.
Mas, para olhos desatentos (ou que simplesmente não querem ver), Tebas é um desbunde. Fartura, riso, tesão, beijaço, música suficiente para dançar até o pé inchar. Tudo é irresistível — não dá pra resistir, assim como não se pode resistir ao próprio destino, mesmo que você tente correr dele até seus pés incharem.
Do primeiro pro segundo ato, passam-se anos. A festa acabou e só sobrou a ressaca, a lombra, o cheiro azedo da bebida choca, as bexigas murchas e o glitter que arranha a pele. A peste corre solta e a miséria fervilha, e a playlist do DJ Édipo não faz mais efeito — e, assim, ele se dá conta de que ele também precisa dançar a playlist organizada por algoritmos superiores.
No jogo pista de dança — palco — tela, Magiluth brinca com o real (mas boa sorte tentando definir o que é “real”) e o virtual (mas boa sorte tentando definir os limites do virtual nessa era de hiperconectividade, de controle de conteúdo pelos algoritmos e de controle de narrativa e visualidade para as redes sociais).
Brinca com o que vemos diante de nossos próprios olhos (com todos nossos limites) e com o que vemos mediado, recortado e editado nas telas (com todos os limites delas), e como passado, presente e futuro se retroalimentam, passado e futuro podendo ser alterados irreversivelmente a partir daquilo que vivemos no presente, nosso futuro dependendo daquilo que existe em nosso passado, mesmo antes de nós estarmos aqui — os regentes tirânicos que estão no poder mesmo antes de nascermos; os sistemas políticos e econômicos que existem há séculos ou milênios; a LGBTQIAPN+fobia que pauta nossa existência no Brasil desde pelo menos 1614.
Somos todos coro dessa tragédia, não apenas porque vemos a derrocada de Édipo de um ponto de vista muito privilegiado, mas também porque temos que lidar com nossos próprios tiranos, com nossas próprias pestes. Resta a pergunta: o que fazer a partir dessa consciência? E como?
Susan Sontag fala, em Sobre A Fotografia, sobre o uso irresponsável das imagens no século XX. Discorre sobre o poder das imagens de construir narrativas, realocar sentidos, dessensibilizar olhares para alguns temas ao banalizá-los ou de provocar a sensibilidade para outros. Sobretudo, fala sobre a arbitrariedade da ação de tirar fotos.
Toda foto revela uma intenção. Uma intenção de capturar um momento a partir de determinado ponto de vista, dentro de determinado limite. “Capturar” no sentido de apossar-se, tornar-se senhor daquilo, como um caçador que coleciona as presas que abateu. Guardar fotos num álbum ou borboletas numa caixa, tudo surge da mesma vontade de tomar o mundo para si, segurar tudo aquilo em que conseguimos colocar as nossas mãos, como troféus ou prisioneiros, não importa.
Ser voyeur é ocupar um lugar aparentemente seguro porque, aparentemente, o observador está destacado daquilo que observa. Está aparentemente protegido porque, aparentemente, não está envolvido na ação. Mas o voyeur influencia diretamente na ação, justamente porque o ato de olhar é uma ação. A física quântica já provou o Efeito do Observador: a simples observação pode alterar o estado de uma partícula ou o resultado de uma medição.
Corifeu e Coro travam essa discussão algumas vezes ao longo do segundo ato, refletindo sobre qual é a função do Coro (e isso inclui você na plateia, é bom lembrar) na memória de um reino, na divulgação de uma informação, na tentativa de controlar uma narrativa, na ilusão de estar apartado da história que é registrada, postada, compartilhada.
Filmar a tragédia é ser conivente com ela? Filmar a tragédia é o suficiente para combatê-la? Filmar a tragédia é altruísmo, necessidade de denunciar, vontade de ser protagonista da história de terceiros ou exercício de sadismo? As imagens dos horrores que assolam o mundo e que vemos compartilhadas nos feeds e nos stories de fato beneficiam as vítimas ou são apenas ruido branco que gera lucro para as companhias donas das redes sociais? As imagens dos horrores que assolam o mundo e que vemos compartilhadas nos feeds e nos stories de fato beneficiam as vítimas ou são apenas ruido branco que nos dessensibiliza para os horrores, tornando-os cotidianos, banais, mundanos, equiparando-os a vídeos de cachorros, boys de sunga, memes e publi de tigrinho?
E fazer teatro?
Tem uma outra camada na encenação que vale a pena citar: é, talvez, uma das peças mais viadas do Magiluth. Parma, Erivaldo, Pedro, as gatas estão lá no palco beijando na boca, batendo leque, falando mole, desmunhecando, rebolando, vestindo paetê, tutu, bichas, bichas, bichas.
Claro, parte disso acena para os próprios personagens: o Corifeu não tem gênero, necessariamente, então borrar esses limites é interessante. Tirésias também é um personagem que vivencia múltiplos gêneros ao longo de sua jornada. Então, é natural que seus figurinos remetam a isso.
Porém, para além disso, não é possível esquecer que Édipo REC é uma celebração: é o 15o espetáculo do grupo, que comemora agora 20 anos de estrada. É uma celebração desses 20 anos, dessa jornada, desse puta feito que é fazer teatro em grupo por duas décadas, e é uma celebração dos membros deste grupo. E, por extensão, dessa viadagem foda que toma o palco de assalto.
Édipo REC é sobre a tragédia. Mas também é sobre pulsão de vida, e sobre o palco como nexo de tragédia, vida, tesão, política, gozo, viadagem, projeto de futuro, horror, comoção e empatia.
Ninguém pode ser considerado feliz até que tenha vivido seu último dia de vida. Mas, no caso de esse ser o seu último dia, talvez seja uma boa ideia pulsar — o oposto disso, afinal, seria uma tragédia.
__ este texto faz parte do Projeto Arquipélago, plataforma coletiva de veículos críticos que inclui o @tudomenosumacritica
@ruinaacesa , @guiaoff , @satisfeita_yolanda , @farofacritica , @horizontedacena e @cena.aberta.teatro , junto à produtora @corporastreado
Para mais informações sobre o projeto, entre em contato.__
Édipo REC
Até 26/10. Quinta a sábado, às 20h. Domingos, às 17h. Exceto dias 6 e 27/10. Dia 12/10, sábado, às 17h. Dias 9 e 23/10, quartas, às 20h.
Ingresso: R$ 18 a R$60
Sesc Pompeia — Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, SP
Criação: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Direção: Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Nash Laila e Pedro Wagner
Design de Luz: Jathyles Miranda
Design Gráfico: Mochila Produções
Figurino: Chris Garrido
Trilha sonora: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Cenografia e montagem de vídeo: Luiz Fernando Marques
Cenotécnico: Renato Simões
Vídeo Mapping e Operação: Clara Caramez
Captação de imagens: Bruno Parmera, Pedro Escobar e Vitor Pessoa
Equipe de Produção de vídeos: Diana Cardona Guillén, Leonardo Lopes, Maria Pepe e Vitor Pessoa
Produção: Grupo Magiluth e Corpo Rastreado