“Lobo”: Deus me livre, mas quem me dera
Passei uns bons cinco dias brincando na minha cabeça com o texto sobre “Lobo”, espetáculo idealizado pela atriz/performer/diretora/dramaturga Carolina Bianchi, que segue temporada no Teatro de Contêiner até sexta (15). Rascunhava, apagava e rascunhava de novo, mas as ideias sempre convergiam para o sexo, não importa qual abordagem eu tentasse.
Correndo o risco de parecer um maluco pervertido que só consegue pensar em sexo só porque a área cênica está recheada de homens nus, acho honesto assumir que “Lobo” é uma das coisas mais sexuais e inquietantes que eu assisti recentemente.
Claro, o sexo não é nem o centro nem o ponto de chegada do espetáculo — esses seriam o instinto, o lado animal, a paixão (nela inclusa a proximidade ao sofrimento), o terror, as sombras do inconsciente, a violência, as relações de poder, a noção de belo etc — e reduzir a obra a isso seria como amputar dela muitas de suas camadas e muitas das possibilidades de leitura que ela evoca. Ao mesmo tempo, não falar do sexo seria não falar de um dos pilares fundamentais de “Lobo”.
Tendo uma dramaturgia não cronológica, fragmentada, imagética e sem uma lógica única dada, “Lobo” é, na verdade, um monte de espetáculos que acontecem na cabeça de um monte de espectadores distintos que porventura estão ao redor do mesmo palco. Então, tudo o que eu digo aqui é uma tentativa minha de apreender/fruir/(re)ordenar o que ocorre na área cênica e, assim, participar do evento. Ainda assim, não me parece uma viagem tão errada da minha parte dizer que o espetáculo trata da pulsão da vida e da pulsão da morte, muitas vezes borrando o limite entre as duas, misturando-as, tornando-as a mesma coisa, expondo saliva, suor e sangue (e os cheiros dos corpos e a temperatura da sala que muda à medida que os performers vão ficando mais e mais aquecidos) para falar do corpo, desde seus aspectos mais sublimes (e daí as referências à arte renascentista) aos mais grotescos (as referências barrocas e góticas, passando pelo melodrama mexicano).
Trabalhando sobre dicotomias, “Lobo” também opera sobre a oposição amor/violência , masculino/feminino, seriedade/sarcasmo, força/fragilidade (respectivamente, a cena do set de filmagens e a coreografia que mescla passos de balé e golpes de luta), além de jogar bastante com a proximidade entre repulsa e atração.
Em uma das primeiras cenas, os performers interagem entre si e, em alguma medida, com a plateia, numa massa de pernas, braços, sons, pesos, apoios etc. Um deles esfregou a testa na sola do sapato do homem ao meu lado (“moço, aí tá sujo”, ele sussurrou) e depois se embrenhou na alcateia de outros performers que se acolhiam e pesquisavam no meio do palco. Outro se mexia na poça de suor deixada pelos corpos de outros dois caras do elenco. No bolo de pessoas, um dos artistas ri alto porque outro colocou o dedão de seu pé na boca.
Lá pelo fim do espetáculo, em fila, todo o elenco passa saliva da boca de um para o outro, numa espécie de beijo desconstruído ou pacto de sangue ressignificado.
A saliva que se acumula numa bola de neve, os cabelos pingando suor, o calor dos corpos, o sangue falso manchando o chão, o cheiro de gente, tudo é encantador e, ao mesmo tempo, meio nojento. Me peguei pensando coisas como “credo, que delícia” ou “que nojo, mas posso participar?” diversas vezes, meio querendo fazer parte da comunhão que eles faziam e meio feliz de só ser observador, sem precisar me comprometer com os fluídos corporais de desconhecidos. Some-se a isso genitais expostos, ora tingidos de tinta, ora adornados com flores, ora cobertos por algo que parece uma lagosta. Estranheza e curiosidade, atração e repulsa, um tipo de suruba organizada pelo H. G. Giger.
Me peguei pensando em sexo, não aquele limpo, simétrico e asséptico que a gente vê na novela, nem aquele sexo performático que a gente vê no pornô, mas no sexo de verdade que a gente faz quando tá realmente com tesão, aquilo que tem cheiro, tem gosto, tem som, que desarruma e mancha os lençóis ou que nem dá tempo de chegar na cama, que bagunça o cabelo, deixa marcas de mordida, deixa as pernas e o abdômen doendo, que envolve entrega e permeabilidade e que não é necessariamente bonito, civilizado, mas é só carne, pele, dentes e unhas. E como brigas também não são bonitas, civilizadas e envolvem carne, pele, dentes e unhas. E como sexo também pode ser autodestrutivo, pode machucar, pode adoecer, pode ser uma conquista sobre o corpo/território do outro. Hobbes penetrando na suruba do Giger.
Há também uma camada de humor na encenação que ajuda na palatabilidade do espetáculo: as músicas bregas dos anos 1980 logo na entrada dão o tom, ajudam a rebater o horror barroco que se seguirá. Uma estátua de lobo-guará colocada quebra a grandeloquência dos monólogos filosóficos que são dados em dois momentos. Um coração desenhado no chão transforma a violência numa piada de humor negro, ou expõe o patético que é padecer de desejo e os corpos dos performers fazem contraponto ao corpo horrendo do monstro de Frankenstein, criando uma sobreposição absurda e uma aproximação entre esses corpos vivos e o corpo fictício que vem à vida a partir da morte mediada por um jogo de “Quem Sou Eu?”, que nos faz observar a inexorabilidade da morte de um modo menos assustador.
Também é importante perceber a presença de Bianchi no todo: é ela quem organiza, coordena, arruma, é ela quem está vestida enquanto todos estão nus, é ela quem fala enquanto todos estão quietos ou só falam para respondê-la, ela é a única mulher no meio de todos os homens e existe um choque entre esses dois campos, uma relação de poder entre ela e eles que é muito interessante e que subverte o falocentrismo que “Lobo” poderia evocar.
São muitas as possibilidades de diálogo a partir de/com “Lobo” e talvez esse rascunho de ideias seja uma delas. Foi isso o que eu absorvi, foi desse jeito que meu corpo (ouvido, nariz, fluxo sanguíneo, sinapses) reagiu a essa miríade de imagens absurdas, quase abstratas. Defini-las ou explicá-las seria tirar muito da graça do espetáculo, além de ser de uma arrogância monstruosa. Não é o que eu pretendo: só queria dizer que achei “Lobo” foda.
Lobo
Até 15 de junho. Quintas e sexta, 21 horas
Teatro de Contêiner: Rua dos Gusmões 43, Santa Ifigênia- São Paulo SP
Ingressos: 30,00 (inteira) 15,00 ( meia entrada)
Concepção, direção e dramaturgia: Carolina Bianchi
Assistência de direção: Debora Rebecchi
Performers: Antonio Miano, Felipe Marcondes, Tomás Decina, Tomás de Souza, Kelner Macêdo, Alysson Mendes, Maico Silveira, Chico Lima, Gabriel Bodstein, Giuli Lacorte, Gustavo Saulle, José Artur Campos, Rafael Limongelli, João Victor Cavalcanti, Murillo Basso e Carolina Bianchi
Treinamentos e atravessamentos afetivos fundamentais: Rodrigo Andreolli, Henrique Lima, Fernanda Vinhas, Jaya Batista, Mayara Baptista
Luz: Alessandra Domingues
Som: Joana Flor
Pesquisa de trilha sonora: Carolina Bianchi
Fotos: Mayra Azzi
Vídeos: Fernanda Vinhas
Produção executiva: AnaCris Medina
Produção geral: Luciana Mugayar
Confecção de objetos de cena: Tomás Decina e Nelson Feitosa
Efeitos especiais terror: Gustavo Saulle
Figurinos: Carolina Bianchi, Tomás Decina e Antonio Vanfill
Apoios: Pequeno Ato, Capital 35, CASA PALCO e Teatro de Contêiner SP e todas as pessoas que contribuíram no Catarse.