[farOFFa] Sobre “Há Dias Que Não Morro”
Uma das coisas mais chatas de escrever sobre os espetáculos que eu assisto é ter que ter opinião sobre tudo. Você tem que ter “entendido” o teatro. Tem que ter uma opinião sobre ele. Tem que ter algo a dizer. É um saco, é chatíssimo, porque ter que ter o que dizer sobre o espetáculo tira bastante da graça dele.
A Susan Sontag, inclusive, tem um artigo chamado “contra a interpretação” que é justamente sobre o fato de que “entender” ou “explicar” uma obra de arte racionaliza, limita e domestifica a arte e todas suas potências subjetivas de fruição; quando você entende uma obra, ela, que podia ser várias coisas, se torna uma coisa só, fechada e finalizada. E o foda da arte são as rasteiras que ela te dá, é o fato dela estar sempre a ser finalizada, guardar um espaço de mistério e de inalcançável que foge do racional, do inteligível, que é indomesticável. Enfim, leia o artigo da Susan, ela é bem mais genial do que eu.
Mas o que eu quero dizer com tudo isso?
Que ontem eu assisti a Há Dias Que Não Morro e que saí de lá com nenhuma vontade de escrever sobre (pra não correr nenhum risco de tentar domesticar o espetáculo) e com uma vontade do caralho de escrever sobre, porque é uma das coisas mais legais que eu vi nos últimos tempos e eu quero falar sobre, quero ler sobre, quero conversar e trocar sobre.
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Isso posto, me conte, pessoa lendo esse texto: como está o seu dia? E como foi seu dia ontem? E quais as suas expectativas pra amanhã? E pro resto da semana? E semana que vem? Como você se sente em relação a isso? Por que?
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Três pessoas estão inseridas num espaço virtual hiper-excitante. A luz é elétrica, o sol é uma projeção, os pássaros são uma faixa de áudio, a grama verde é sintética. Tudo é para fingir que é, mecânico e pré-programado, e a rotina é sempre a mesma, a ordem está estabelecida — mas nada além dela. A vida é vibrante mas também estéril, pois que nada brota de grama sintética e à luz de LED.
É tipo Westword encontra Matrix encontra Black Mirror encontra Godot e esbarra de leve (talvez, não sei) no Instagram e na sua massificação de consumir e produzir imagens sempre no mesmo formato pré-definido tipo A para o feed e tipo B para os Stories, e como nossa capacidade de criação imagética está pautada pelas preferências de um app e como vivemos numa época onde fotografar e gravar significa experienciar; ou seja, tornar virtual o real a fim de provar que ele existiu, que nós existimos, que nós somos e fomos muito felizes e cheios de vida, mesmo que quem decida o jeito ideal de se registrar nossa própria vida seja um algoritmo qualquer e que estejam aparecendo novos estudos que apontam que essa enxurrada de fotos felizes nas redes sociais só aumenta a epidemia de depressão contemporânea que estamos vivenciando. Viajei aqui, né? Mas eu avisei que esse texto ia ser bem viajandão.
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Lentamente, uma a uma das três pessoas inseridas no cubo-simulação acaba dando pane e percebendo as limitações de suas pares e do contexto em que estão inseridas. Isso pode ser um puta ato de rebeldia, de potencial libertário, mas também pode não ser.
De que adianta notar as farsas e fraturas do local onde se está, se ninguém mais nota? Uma única pessoa consegue fazer qualquer revolução, por menor que seja, ou ela só é possível quanto TODOS também estiverem dispostos a revolucionar? E é possível revolucionar? Revolucionar pra onde, com qual objetivo, de que modo?
No final, tudo muda, não fica nem melhor nem pior, só diferente — e o que é possível fazer a partir disso?
Quando não há mais simulação, marcação, dramaturgia [embora, paradoxalmente -e eu amo esse paradoxo- isso seja uma escolha da dramaturgia], controle, o que fazer de nós mesmos e de nossos potenciais, e quanto tempo até batermos em outras barreiras?
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O que eu acho foda na dramaturgia é que ela não dá, nem quer dar, respostas ou morais. Instala-se o mal estar mas não se dá a receita da felicidade ou da plenitude. Ninguém é coach ali, afinal. Claro, subentende-se algo, pressupõe-se algo, o papo está dado e sabe-se do que se está falando. Ao mesmo tempo, há espaço para que você preencha lacunas, sobreponha o tema da peça sobre outros assuntos e veja onde dá liga e onde não dá. É possível traçar teorias, pensar em argumentos, mas não respostas finais — há margem para que Há Dias Que Não Morro continue indomesticada.
Do mesmo modo, eu que não vou falar muito das leituras que eu tive (mas quero saber das suas!) além do que eu compartilhei por aqui. Mas basta dizer que saí com mal estar. Muito provavelmente você tenha passado por isso, ou vá passar quando for ver. Me conta. E se não passar por isso, me conta mais ainda.
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Se a dramaturgia, esse Esperando Godot que tomou MD e ficou brisando em RGB chega na potência em que chega, é mérito dela e dela estar amparada por toda uma equipe que a fortalece e é fortalecida por ela. Do elenco brilhante, à direção precisa, ao cenário e iluminação que se borram e se contaminam e não se sabe muito bem onde começa um e termina outro (e essa é minha coisa predileta neles), às pesquisas de som e microfone e legendagem, tudo está em função da criação de um campo de estranhamento, desconforto, asfixia até, e de uma aparente ordem patética que se torna ainda mais risível no final, quando tudo é desmontado.
Cabe elogiar o puta rigor com que tudo é feito, como as marcações são precisas e as deixas e contagens de tempo e mudanças são executadas com o rigor de um relógio suíço e esse excesso de ordem beneficia o espetáculo primeiro por ser de uma maravilha estética que poucas vezes eu vi por aí e segundo porque o meio é a mensagem: usa-se da forma, da regra, do tudo-tem-sua-função-dentro-disto-que-foi-ensaiado-e-feito-outras-mil-vezes pra discutir justamente isso.
E tem as atrizes. Que fazem muito a partir de aparentemente muito pouco, de um maneirismo estilizado de voz, máscara e partitura corporal que rui e racha muito sutilmente aqui e ali, mas que tem força justamente pela sutileza, e que conseguem repetir as mesmas falas de novo e de novo e de novo com subtextos novos aqui e ali.
E a sacada de instaurar o campo poético na entrada da sala de espetáculos a partir da instalação multicolorida com o palhaço deitado, como um portal mesmo, como se o público estivesse entrando num outro mundo dali pra frente (claro que toda porta de teatro faz isso, você e eu sabemos disso, o que eu tô dizendo aqui é que o modo como isso é feito aqui é foda) só para depois isso ser subvertido: quando o cenário é desmontado, somos de novo tacados no mundo real em que estávamos antes de tudo começar, mas dessa vez não passamos por portal nenhum, somos jogados através dele durante o espetáculo, porque a dissolução do que é peça e do que é mundo se dá justamente durante a peça, como efeito dela (e empregado por ela).
E o palhaço que estava lá na porta continua lá, nem melhor nem pior, só diferente.
[mas essa, claro, são as minhas brisas. Se você chegou até aqui, me conta as suas?]

Há Dias Que Não Morro; crédito: Paula Hemsi
HÁ DIAS QUE NÃO MORRO
Dia 11 às 19h e dia 12 às 14h. Oficina Cultural Oswald de Andrade. 45 minutos. Ingresso consciente.
Parte da farOFFa, circuito paralelo de artes de São Paulo.
Idealização: Academia de Palhaços & ultraVioleta_s
Direção e Concepção: Aline Olmos, José Roberto Jardim, Laíza Dantas e Paula Hemsi
Texto: Paloma Franca Amorim
Dramaturgia: Aline Olmos, Laíza Dantas, José Roberto Jardim, Paula Hemsi e Paloma Franca Amorim
Encenação: José Roberto Jardim
Elenco: Aline Olmos, Laíza Dantas e Paula Hemsi
Assistente de direção: Luna Venarusso
Cenografia: Bijari
Direção Musical e Trilha Sonora Original: Rafael Thomazini e Vinicius Scorza
Iluminação: Paula Hemsi
Figurino: Carolina Hovaguimiam
Modelista: Juliano Lopes
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Cenotecnia: Leo Ceolin
Preparação Corporal: Maristela Estrela
Design de sistema de operação sincronizado: Laíza Dantas
Operação de Luz, Vídeo e Som: Murilo Gil e Vinicius Scorza
Técnico de Som: Murilo Gil
Técnica de Luz: Paula Hemsi
Técnica de Vídeo: Laíza Dantas
Técnica de Palco: Aline Olmos
Produção Executiva: Tetembua Dandara
Direção de Produção: ultraVioleta_s
Fotos: Paula Hemsi e Victor Iemini
INTERVENÇÃO
Concepção: ultraVioleta_s e Coletivo Bijari
Assessoria Criativa: Fernando Velázquez
Performer: Mauriceia Rocha