Tudo, Menos Uma Crítica
3 min readMar 12, 2020

[farOFFa] Sobre “Bolero”

Eu amo espetáculos onde serve-se vinho.

Isso não tem a ver com as minhas tendências etílicas, que fique claro. Não é o caso. O fato de eu amar espetáculos onde a gente bebe vinho, ou café, ou comida, ou que tem flores, ou que seguem essa tendência contemporânea é que essas encenações vão ao encontro de algo no qual eu acredito muito [e imagino que você também]: que a fruição de uma obra se dá tanto intelectualmente quanto esteticamente quanto sensualmente. Quando, um pouco antes de começar Boleto, Mauricio Florez me ofereceu uma taça de vinho, o que aconteceu foi que ele me ofereceu uma nova chave de acesso ao trabalho: o cheiro do vinho, o gosto, o formigamento na língua, a brisa, tudo isso desloca meu corpo para um estado novo, de maior abertura e de maior atenção às pequenas coisas que acontecem nele. E no corpo de Florez.

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Em cena, Florez dança a partir/através/com o Bolero de Ravel numa reimaginação/releitura/tentativa de tensionamento/possibilidade de desafio/atualização à coreografia Arrojo, do venezuelano Luis Viana.

Ravel, Florez, Viana, Bolero é produto da soma ou da subtração de todas essas forças, desta antropofagia toda. No centro da área cênica, Florez expõe um repertório bastante variado de gestos (e, por extensão, de intenções) e dá pra pinçar aqui e ali referências do balé clássico, do contemporâneo, referências européias e africanas e brasileiras e códigos e posturas e ações e gestos que a gente aprendeu como sendo femininos executados por um homem, nesse paradoxo que a gente, em pleno 2020, não sabe direito equacionar — e olha só em que caralho de mundo estamos vivendo por causa disso.

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Me parece que, pra quem é mais da dança, outras referências devem ser captadas, outros assuntos devam surgir, apareçam coisas que pra mim me passaram batido. Não é muito o meu caso, essa via de acesso me esteve fechada. Se você pescou algo que me escapou (e tenho certeza de que sim), me conte. Mesmo.

Minha relação com Bolero não foi intelectual, não foi através da história da dança (um release que eu li disse que esse espetáculo também se referencia a Maurice Béjart — honestamente, não sei o que isso quer dizer), mas através das sutis mudanças que rolavam no meu corpo e no de Florez e do quão apaixonante é isso.

A dança não acontecia só no espaço, nos desenhos que o corpo produzia, na ocupação ou no deslocamento, mas na superfície da pele que ia ficando avermelhada pela circulação do sangue, pela blusa que se sujava de maquiagem, pelo cabelo que suava e pela minha cabeça que ficava balançando no ritmo, ou nos músculos da minha panturrilha que se contraíram como se eu também estivesse dançando.

Se a história da dança me escapou, o fenômeno dança no tempo presente (e através da presença) me cativou. O corpo dançando alterava o estado do espaço e também alterava o corpo do dançarino e também alterava o meu que observava e queria dançar junto por causa do vinho, por causa da música, por causa dessa energia que flui da plateia pro espaço cênico e que volta pra plateia nessa retro-alimentação.

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Minha parte predileta da apresentação foi quando o som falhou e a música acabou, no meio.

Parece filha da putagem, né. Mas calma, não é.

Foi minha parte predileta não por sadismo, mas pelo risco que ela representou, pela interferência na ordem e no rigor da partitura e da contagem de tempos, do que isso poderia vir a significar e do que significou: depois de um microssegundo, depois de todo mundo ter dito mentalmente “putamerda”, Florez muito elegantemente (que nunca tinha parado de dançar, nem por esse microssegundo do putamerda) começou a cantarolar o Bolero de Ravel e foi apoiado por duas ou três pessoas na plateia. A música, portanto, não era um elemento mecânico e externo, dependente de um aparelho de som, mas algo que estava dentro de quem dançava, como o vinho ou o suor ou a panturrilha tensa. A retro-alimentação.

Mauricio Florez em Bolero. Foto: site farOFFa

Intérprete – Criador: Mauricio Flórez Coreografia original: Luis Viana Trilha: Bolero de Maurice Ravel Figurino: Flow Kountouriotis Produção: Corpo Rastreado Iluminação: Clara Rubim Colaboração artística: Ricardo Gali, Fábio Furtado, Beatriz Sano, Natália Mendonça, Patrícia Bergantin, Juliana De Bonis e Gabriel Tolgyesi

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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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