[farOFFa] Sobre “Auê
Oi, pessoa hipotética lendo este texto. Tudo bem por aí? Tá tomando água? Tem lavado bem as mãos? Tá cumprindo direitinho o isolamento social? Tá segurando bem as pontas durante essa pandemia? Sério: tá tudo bem por aí?
Que tempos fodidos esses, hein. Mas calma, vai passar.
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Eu lembro que todo mundo falava superbem de Auê quando ele estreou por essas bandas, mas acabei nem conseguindo assistir, a vida andava corrida. Aí, falaram que Suassuna — O Auto do Reino do Sol era imperdível e de fato era, lembro de ter me encantado por tudo que rolava no palco, de ficar com os olhos brilhando e de rir alto muitas vezes — lembro que numa piada em Rutherford Bohr eu gargalhei alto, de saltar na poltrona batendo palma e urrando de tanto rir, parecia uma foca amestrada, imagina o mico. Mas era mesmo imperdível, e eu comecei a acompanhar com mais atenção a Barca dos Corações Partidos.
Então vocês imaginem o fogo no rabo que me deu saber que eles iam reapresentar Auê aqui em SP por causa da farOFFa. Pois bem.
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Bom, pois é. Se você estiver com pressa eu te adianto o final desse texto: Auê merece toda a fama que tem.
Se você estiver com um tempinho sobrando, pega um café, joga o nome deles no YouTube ou no Spotify, ouve essa galera enquanto lê o texto, talvez ajude a dar um clima.
Levou um tempo até que a proposta de Auê assentasse em mim, essa experiência teatral que flerta tanto com o show, cuja dramaturgia escorre do que é convencional e deságua em outras possibilidades. Mas depois que assentou, fiquei pensando que esse é um dos pontos fortes do espetáculo. Gosto justamente porque Auê não é necessariamente sobre uma história, mas sobre um tema e nisso a opção de investigar o tema ao longo de mais de vinte canções é bem acertada, amplia as possibilidades de investigação em letras, musicalidades e encenações variadas que tratam de facetas distintas do assunto. Experiências diferentes para diferentes modos de experimentar o mesmo tema.
Veja, Auê é sobre amor. Ou, ao menos, composto bastante por amor. Isso é ponto pacífico. Agora, o que é amor? Ou: o que não é amor? Amor é a paixão, o carinho, o tesão, o sorriso, o beijo? E o amargo, o ciúmes, a insegurança, o luto pelo término, isso também é amor? Bom, não quero expor minhas opiniões sobre o tema, não vem ao caso, mas me parece que Auê também sonda isso. Canções sobre a completude do amor correspondido dividem espaço com o horror do ciúmes, o vazio do fim, o agridoce de lembrar de uma história que terminou e da vida que seguiu.
E me parece também que Auê não fale apenas do amor romântico, mas do amor enquanto pulsão de vida. Amor pela arte (porque é impossível não se apaixonar ao ver eles tocando, declamando, cantando, fazendo números no tecido, dançando) , amor pela energia da vida (porque tanta coisa acontece no palco, com tanta força, com tanta paixão, tanta energia, que eletriza a plateia). Isso da energia não é só mérito dos atores-cantores-músicos como é da direção vigorosa de Duda Maia que é elegante e precisa ao extrair o máximo de efeito do mínimo de ferramentas: luz (do Renato Machado, brilhante, sem trocadilho), cenário e atores se configuram e se reconfiguram a cada nova musica.
Ora imponentes e cheios de força, impressionam por ser tão vibrantes; ora discretos, ganham pela sutileza. Uma luz que ilumina só o pé da galera, ou um ator que anda por um facho de luz como se fosse uma corda-bamba, ou alguém deitado no tecido, ou eles subindo em fila num banquinho… são coisas pequenas, quando sozinhas, mas dentro do contexto do espetáculo compõem um mosaico de bastante força poética.
Porque parece simples. Porque parece fácil de fazer. Porque parece brincadeira.
Quase como se você pudesse, eventualmente, subir no palco e fazer parte da festa.
De novo: mérito da direção precisa de Maia e do carisma fodido do elenco. Sim, eu sei “carisma fodido” não é um termo técnico. Mas boa sorte tentando descrever eles de outro jeito. Vai aí, eu espero.
Nesse sentido, eu fico com a impressão que Auê é sobre pulsão de vida. Tesão na vida. Tesão na amada, no amado, na arte, em estar vivendo e fazendo festa e cantando e tocando. Tesão no tesão.
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Só pra dizer que eu não falei disso que é essencial: se você puder ver ou pelo menos ouvir a trilha de Auê, recomendo muito que você repare na versatilidade dos sons. Você vai sacar um tico de MPB, um tico de rock, coco, forró, samba… o leque é bem grande, tem uma brasilidade pulsante , vibrante e valorizada. Nesse sentido, Auê é muito rico, e eu tenho percebido um monte de coisas novas à medida que ouço de novo. Foi uma das minhas coisas prediletas na sessão que eu assisti e é ainda mais gostoso ouvir com calma agora, uma faixa de cada vez, no fone.
Outra coisa importante sobre a qual falar: o texto e a performance de Doideira de Amor. Foda, bicho. Foda porque o ator tem dez minutos pra construir uma loucura de quem vê o amor azedar, o ciúmes tomar conta, o bom virar ruim, que tenta se mutilar pra evitar a dor e depois faz as pazes com tudo isso. Ator sozinho, num facho de luz, ele com ele mesmo, dando conta de tudo isso. Bonito demais.
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Acho bonito como Auê é uma sequência de cenas e de músicas que seguem adiante com vitalidade e energia. Elas seguem adiante, num fluxo. E aí termina com Ali.
Vai passar, vai passar.
Acho um jeito foda de encerrar tudo que se falou de amor: vai passar. O amor, o sorriso, a paixão, o tesão, o medo, a dor, o ciúmes, o vazio, a crise, as tardes de sol de domingo e as noites sem dormir, o medo da pandemia. Vai tudo passar. A vida é isso, um fluxo energético que passa, que a gente precisa experienciar o máximo que der.
Sério. Toma aquele café que eu sugeri. Bota a playlist deles pra ouvir (ou outra, se você preferir). Fique perto de quem você ama. Vai passar.
Auê. Foto: Silvana Marques
Direção: Duda Maia
Direção musical e arranjos: Alfredo Del-Penho e Beto Lemos
Com:
Ádren Alves (Percussão, sax soprano e vocais)
Alfredo Del-Penho (Violão, guitarra, baixo, cavaquinho, flauta, percussão e vocais)
Beto Lemos (Guitarra, violão, rabeca, sanfona e percussão)
Eduardo Rios (Sanfona, sax tenor e vocais)
Fabio Enriquez (Trompete, percussão e vocais)
Renato Luciano (Violão, trombone e vocais)
Ricca Barros (Baixo, sax alto e vocais)
Artista convidado: Rick de La Torre
Iluminação: Renato Machado
Design de Som: Gabriel D’Angelo
Direção de Arte: Kika Lopes
Direção de produção: Andréa Alves
Diretor assistente: Eduardo Rios
Direção de Produção: Andrea Alves
Coordenação de Produção: Leila Maria Moreno
Produção Executiva: Raphael Baêta