crítica isolada #6: a escrita como jardinagem

Tudo, Menos Uma Crítica
5 min readApr 13, 2021

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[1: Este é o sexto texto escrito para o projeto Crítica Isolada. Três estão aqui e três no ruina acesa , do amilton de azevedo, meu parceiro de idealização e mediação do projeto. A cada encontro, nós + duas pessoas convidadas + as pessoas que nos assistem, refletimos sobre o nosso fazer crítico.

No terceiro encontro, que este texto ecoa, tivemos o privilégio de receber duas profissionais que respeito imensamente: Jocianny Caetano, do Filé de Críticas e Daniele Avila Small, do Questão de Crítica. É também a partir das provocações que elas nos deixaram ao final do evento (mas não só) que surge este texto.]

Meu pai é jardineiro.

Não garden designer, não paisagista. Jardineiro. Passou décadas trabalhando com enxada e ancinho na mão, cuidando dos jardins dos outros. Carpia, podava, regava, plantava as mudas, varria as folhas secas, cuidava das pragas. Em julho e dezembro, nas férias escolares, me levava pro serviço e eu brincava entre as árvores do pomar que ele e os colegas cuidavam.

Passava horas ajoelhado, arrancando ervas daninhas. Terminava o dia com dor nos joelhos, ombros, cotovelos, e com a nuca queimada de sol. Estourou as pernas e os braços nesses anos de esforço repetitivo, sofre de dor até hoje.

Quando se aposentou, eu e minha mãe achávamos que ele ia descansar um pouco, pegar mais leve. Bom, tem poucas coisas que meu pai não sabe fazer, e uma delas é pegar mais leve — como atestam as fotos que ele me manda quase diariamente no whatsapp, de chapelão e ancinho na mão, avisando que pegou no batente.

Meu pai começou a cuidar do jardinzinho de casa: plantou um pézinho de laranja, outro de limão, botou tomilho, alecrim e manjericão em alguns vasos e, seu maior orgulho atualmente: plantou uns tomates-cereja.

A primeira leva de tomates-cereja que deu lá na casa dos meus pais não tinha o gosto que ele queria. O solo da casa era muito ácido, de modo que os tomates também ficaram muito azedos. Meu pai não se deu por vencido: trabalhou na terra, balanceou a acidez e os tomates de agora são uma delícia — como atestam as fotos que eu mando pra ele no whatsapp, das saladas e molhos que eu faço com os tomates que ele me dá, orgulhoso do seu projeto pós-aposentadoria.

Quando a Daniele nos perguntou como poderíamos ecologizar o ambiente online, eu pensei nos tomates-cereja do meu pai. Na terra ácida e no trabalho dele sobre ela.

Quando participei do Rabisco podcast, conversamos sobre teatro online, e na ocasião comentei que sentia que ele era um broto nessa grande árvore milenar que é o teatro. Um galho épico ali, um trágico lá, um realista acolá, um de bonecos, outro pós-dramático. E no meio destes galhos fortes e cheios de frutos deliciosos, um broto novo, surgindo de um canto do qual ninguém achava que poderia surgir algo.

É a partir desta metáfora que eu tenho percebido o teatro online. Extrapolando aquela primeira discussão de se é ou não teatro (da qual parece termos evoluído, mas volta e meia voltamos a esta estaca zero) e refletindo sobre qual é nossa responsabilidade sobre este tipo de teatro que tem surgido.

Hoje vi viralizar de novo aquela imagem que diz “quando o teatro voltar, volte ao teatro”. Ela sempre me bate errado, talvez porque eu não consiga elaborar muito bem que o teatro “se foi” e que ele “vai voltar”. Como se 2020 e 2021 não fossem nada além de lacunas e a produção teatral deste período, desprezível.

Me parece que a frase confunde “teatro” com “teatro que era feito até 2019”. Há uma grande diferença aí. Parece que ela circunscreve “teatro” àquilo que é feito num edifício, numa caixa preta. Parece que define “teatro” como um fenômeno já bem conhecido e documentado, acomodado confortavelmente no imaginário coletivo, que todo mundo sabe o que é ao ouvir seu nome — um palco, uma plateia, um blackout, duas máscaras gregas, essas coisas.

Mas ao pensarmos nisso, não cristalizamos, fossilizamos, algo que está vivo? Não podamos demais o pé, impedindo que ele cresça?

E volto à pergunta da Daniele: como ecologizar?

Talvez seja nos maravilhando. Talvez seja pensando “uau, teatro também pode ser isso?”.

Talvez seja se abrindo para a possibilidade de ser inquietado por uma obra online — pra mim foi Ôma, pra muitos foi Tudo Que Coube Numa VHS ou Peça.

Talvez seja olhando com simpatia para as obras que nos atravessaram menos, mas que são históricas simplesmente por estarem existindo nos dias de hoje. O mundo acabando e a gente ainda insiste em fazer teatro. E acha brechas. E pesquisa linguagem. E tateia caminhos. E quebra a cara. Mas faz.

Talvez seja pensando a longo prazo. Talvez seja se perguntando “hmmm, se em um ano de pesquisa contínua no online chegamos até aqui, onde será que chegaremos em quatro anos?”; “como será que podemos misturar este tipo de teatro com outros, no futuro?”; “o que pode surgir daqui pra frente se esse broto continuar crescendo e der mais frutos? E se outros brotos surgirem?”.

Me pergunto isso, pensando em linguagem, estética, mas também nos desafios: como ganhar dinheiro, como capacitar profissionais, como isso pode impactar cursos de teatro — atuação, direção, luz, história são alguns exemplos práticos — ,como isso pode facilitar o trânsito entre plateias e públicos de lugares distintos. E como o teatro online tem barreiras em si mesmo (o acesso à internet no nosso país, pra começo de conversa).

As perguntas são várias. Tantas que eu não darei conta delas aqui — nem pretendo; como sempre falamos no Crítica Isolada, os textos a partir dos debates são um recorte, um ponto de vista dentre vários possíveis.

Mas a imagem do meu pai e dos tomates dele segue na minha mente. Me pergunto se a crítica não é um jeito de aguar o jardim e trabalhar o solo onde a árvore está plantada. Se não é um jeito de chamar a atenção pra um broto que surgiu, e cuidar dele e esperar os frutos pra curtir o seu sabor.

Se a crítica não pode se maravilhar com os frutos que surgem e comê-los com água na boca, saborear seu suco e seu perfume, responsável pelo cuidado da árvore mas privilegiada por poder comer dela. (E também: se a crítica não pode se reconhecer galho desta árvore; responsável pela árvore e fruto dela mesma, assim como artistas, educadores e demais profissionais cuidam da árvore da qual fazem parte)

Frequentar a árvore. Cuidar do que nasce. Saborear seus frutos. Deitar à sua sombra. Escrever, escrever e escrever sobre as coisas lindas que andam surgindo neste momento tão desolador (lindas simplesmente e justamente por existirem e florescerem neste momento). Chamar mais gente pra provar dos frutos. Imaginar o gosto dos frutos que surgirão no futuro, assim como na parábola do semeador de tâmaras.

Dizer por aí que a árvore não foi a lugar nenhum, ela segue aqui, com raízes fortes e cheia de frutos.

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textos reflexivos de Fernando Pivotto sobre teatro que são tudo, menos uma crítica

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