crítica isolada #7 — o fim e todo o resto
Enfim chegamos ao 7o e penúltimo texto do ciclo de debates Crítica Isolada — Para Pensar O Teatro Em Um Ano de Pandemia. Os textos, você já deve saber a esta altura, são um jeito de revisitar e expandir os debates da semana anterior, a partir das provocações deixadas pelas pessoas convidadas e pelos atravessamentos do chat. Também recomendo que este texto seja lido dentro do contexto gerado pelos seis anteriores e pelo seguinte, como um pensamento contínuo.
O jogo de palavras com o nome do projeto, “Crítica Isolada”, é justamente uma tentativa de olhar o quão isolada e/ou integrada a crítica está. Uma tentativa de perceber sua integração ao fluxo geral da cena teatral contemporânea, de perceber as ondas que ela provoca, e quais ondas chegam até ela. Uma tentativa de perceber qual lugar ela ocupa na constelação — ou no arquipélago, para utilizar uma imagem que surgiu no chat do encontro do último dia 15.
O chat do evento sempre foi da maior importância em nossos encontros: foi nele que as pessoas que acompanhavam as lives refletiam sobre os temas e falas, provocavam, se colocavam, questionavam, concordavam, discordavam, construíam junto — a crítica, afinal, é a elaboração de pensamento(s) sobre teatro, e tão mais interessante esta elaboração é quanto mais coletiva, conjunta, colaborativa ela for.
Tudo isso pra dizer que, de alguma forma, estivemos menos isolades nas quatro semanas do ciclo de debates, pois nos reunimos — profissionais da crítica, da produção, da assessoria de imprensa, da direção etc — para pensar teatro, juntes.
Se isso parece um autoelogio ao projeto que eu, Fernando, e amilton propusemos, perdão. Não é. Ou não é só. É uma tentativa de responder às provocações de Guilherme Diniz e de Kil Abreu, nossos convidados no derradeiro encontro.
É uma tentativa de pensar na ética, na prática e mesmo na poética da crítica. Ou nos estatutos dos nossos projetos críticos, como brilhantemente colocou a Daniele Avila Small.
Você deve ter reparado a quantidade de vezes que eu escrevi a palavra “tentativa” até aqui — e escreverei daqui em diante. É proposital. É uma tentativa (eu disse que escreveria mais) de delimitar o tamanho do meu projeto. O que eu almejo, no Tudo, Menos Uma Crítica, é tentar. Tentar escrever, tentar refletir, tentar me comunicar, tentar desdobrar, tentar convidar as pessoas para a conversa. Quero muito mais tentar do que conseguir. Muito mais isso do que ter certeza.
Veja, faz parte do meu estatuto me delinear como um homem pensando a partir do que ele assiste e, com sorte, junto de outras pessoas que assistiram à mesma coisa e leram a crítica ou os carrosséis. Mas só um homem, que pensa de um jeito, e que consegue chegar até determinado ponto.
Este parágrafo anterior, veja bem, não é um atestado de incompetência, nem um pacto pela mediocridade. Não é. Mas é uma tentativa de olhar ao redor, de perceber o todo. Eu sou só um homem. No meio de toda uma classe artística, que existe porque houveram milhares antes desta geração e haverão outros milhões no futuro. Eu sou uma voz na coletividade.
Quando Guilherme nos pergunta quais paisagens históricas queremos ajudar a construir com nossas críticas, a parte que mais me instiga em sua colocação são os plurais. Paisagens. Críticas.
Se tem uma coisa sobre a qual nos debruçamos recorrentemente no Crítica Isolada é no fato de que não existe uma crítica, mas várias, diversas, que inclusive almejam coisas diferentes entre si. Alguns colegas meus entendem seus textos como registros históricos, que ajudarão as gerações futuras a compreender o momento em que vivemos. Acho um projeto louvável, porém completamente diferente do Tudo, Menos. Nada do que eu escrevo aqui deve ser considerado um registro e um documento, não pretendo que nada seja lido no futuro — nem em 5 anos, nem em 50.
É em parte por isso que eu tenho produzido para o Instagram, em formato carrossel: porque tudo se perderá em alguns anos, quando a rede social se extinguir. E porque os carrosséis, pensando utilitariamente, não prestam pra muita coisa: não podem ser anexados em projetos, ou em releases, nem ajudam muito nos clippings. Muita coisa acontece: as pessoas leem o que eu produzo e reagem a isso, há uma construção coletiva que eu acho interessantíssima — leia os comentários nas publicações! — , mas tudo vai acabar daqui a pouco, como um castelo de areia. Não sobrará registro nenhum.
O que, é claro, não me desobriga de pensar sobre quem eu escrevo. Se é possível pensar em algum padrão, ou equilíbrio, entre as coisas que entram no meu radar e vão dele para meu feed: publiquei críticas sobre quantos trabalhos de artistas já consolidados, e sobre quantos de iniciantes? Quantos de SP e quantos de outros lugares? Antes da pandemia, quantas obras que estavam em cartaz em regiões centrais, e quantas não?
Diogo Spinelli, convidado do primeiro evento, me mandou um áudio no whatsapp alguns dias depois de sua participação no Crítica Isolada, falando sobre como a crítica tem por costume escrever a partir daquilo que recebe das assessorias de imprensa, e um grupo que pode se dar contratar uma assessoria de imprensa é um grupo que tem algum dinheiro e alguma estrutura.
Claro, não é possível dar conta de tudo que acontece. Nem no país, nem no estado de São Paulo, nem sequer no município. Haverão brechas, lacunas, buracos e falhas. Mas é possível pensar em des-viciar o olhar, talvez. Tentar aumentar o escopo das obras assistidas e criticadas, a fim de ver mais do que se está acostumado a ver. A Daniele disse, numa aula no ano passado, que a crítica, mesmo quando negativa, legitima algo, diz que esse algo é digno de ser notado e debatido. Assim, me pergunto o que estamos dizendo que é digno de ser notado e debatido — e o que fica de fora da plataforma que são os perfis de crítica.
E me pergunto como encontrar um equilíbrio, entre a falência inevitável de dar conta de tudo (ou mesmo de muito; ou mesmo de boa parte) e a tentativa de dar conta do máximo possível e do mais diverso possível.
Talvez, me parece, a soma das plataformas críticas dê conta de um todo maior e mais interessante — ou pode vir a dar. Talvez o surgimento de novos projetos críticos, e da conexão entre eles, possa auxiliar a criar paisagens mais ricas, como provoca o Guilherme. De que modo o Tudo, Menos é enriquecido pela existência do ruína acesa, do Farofa Crítica, do Teatrojornal, do Quarta Parede, do Horizonte da Cena, do Filé de Críticas, do Questão de Crítica e do Cena Aberta, entre outros projetos? De que forma o que meus colegas escrevem enriquece o meu trabalho, seja por abordar algo sobre o qual eu nunca escreveria, seja por falar de algo que eu também falei, mas de modo diferente? De que modo o Tudo, Menos enriquece outros projetos? De que modo esse arquipélago crítico beneficia quem nos lê e os artistas sobre os quais escrevemos? De qual modo quem nos lê nos enriquece?
Talvez alguma coletividade, não a de um trabalho coordenado e sincronizado, com interferência direta de uns sobre os outros, mas da simples existência coletiva ajude a começar a tatear uma resposta possível à colocação de Guilherme. Talvez a coletividade nos ajude a ver as coisas a partir de pontos distintos, tencionando, oferecendo alternativas, percebendo de modo diferente, numa discordância não agressiva, mas até necessária. Talvez isso nos ajude a desarmar a armadilha do pretenso pioneirismo, como discutimos no último encontro. Talvez ajude a fazer surgir outros assuntos, outras historiografias, outros convites a outras pessoas, num movimento contínuo de concordância e discordância, sincronia e assincronia, lançando diversas ondas nas múltiplas praias do arquipélago.
Talvez.
Se a provocação do Guilherme não será esgotada neste texto, a do Kil também não. O que é o exercício da crítica no mundo da mercadoria?, nos perguntou ele no último encontro. De certa forma, no texto #3 eu verso brevemente sobre isso, e amilton faz o mesmo no #4. Neles, discutimos a produção crítica como produto virtual, a mercê de likes e algoritmos. Embora ambos os textos também não contemplem toda a extensão da pergunta — nem têm esse objetivo — , eles ajudam a dar mais textura ao debate, ao considerar o volume de postagens necessário para manter nossas cabeças minimamente acima do nível da água na torrente — não por acaso, chamada flood — de conteúdo gerado diariamente por todos os usuários.
Se no contexto das redes sociais, o conteúdo precisa evocar uma resposta emocional intensa do leitor para ganhar engajamento, me pergunto o impacto que isso tem na crítica. Tudo precisa de leads impactantes e deve ser feito para ser viralizado, a fim de manter a relevância (algorítmica) do conteúdo? Como isso pode vir a transformar a análise de um espetáculo? A resposta emocional intensa é aquilo que mais almejamos, quando escrevemos sobre um trabalho?
Claro, isso não é problema recente: há tempos, trechos de textos são utilizados pelas produções de espetáculos como material de divulgação ou clipping. Absolutamente nenhum problema em relação a isso — tanto que já fiz várias vezes o mesmo nos textos sobre o meu grupo teatral. Mas isso me parece tocar, de certo modo, na provocação de Kil: é um dos usos da crítica auxiliar o clipping de um espetáculo? Quando as pessoas nos convidam para escrever sobre seus trabalhos, é essa sua expectativa? Existe interesse em uma crítica que não seja clippável?
Não sei a resposta para essas perguntas, nem se há. Mas não paro de pensar que elas têm relação com a pergunta de Kil. Da mesma forma, não acho que esta expectativa em relação à crítica seja um problema em si. Não acredito que devemos, obrigatoriamente, repensar a relação entre críticos, artistas, assessores de imprensa, leitores, curadores afins. Não me parece haver nenhum problema — pelo menos, não um grande problema — nestas expectativas.
Mas as minhas perguntas, me parece, surgem como um convite à imaginação de relações outras — não a demolição das relações atuais, mas o rascunho de outras possíveis.
Justamente porque elas voltam ao começo do texto, e ao próprio título do projeto. O quão integrada a crítica está do resto da cena teatral contemporânea? Quais relações ela articula, em quais ela está articulada? Como ela auxilia a construir, coletivamente, novas possibilidades de futuro?
Não sei se existem respostas objetivas para essas perguntas. Mas seguimos tateando.