Crítica Isolada #2: a insistência em se estar junto
Este texto é uma reação ao primeiro dia do Crítica Isolada — Para Se Pensar o Teatro Em Um Ano de Pandemia, e à conversa que eu + amilton de azevedo + Maria Eugênia de Menezes + Diogo Spinelli + o público participante tivemos dia 25/03.
Também é uma reação às perguntas que Maria Eugênia e Diogo generosamente nos deixaram.
Perceba que uso o termo “reação”, no sentido de reagir, agir por causa de um estímulo, e não “responder”. Responder pressuporia dar uma resposta única ao enunciado. Este texto aqui é uma elaboração a partir dos enunciados, a partir da conversa do dia 25, a partir dos comentários no @critica_isolada e em outros perfis.
Perceba também que este texto é uma reação, entre outras possíveis. Não é nem a verdade absoluta nem a resposta definitiva, nem nada desta magnitude. É uma tentativa de fazer as coisas assentarem em mim — este texto é o micro do micro, e deve ser lido nesta dimensão.
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Há quatro dias estou tentando escrever este texto. É a terceira vez que apago tudo e começo do zer… Bom, agora é a quarta, oficialmente. Apaguei o anterior. Se tudo der certo, esta é a versão que vou publicar. Mas não garanto.
Passei por diversos estados de espírito e mudanças de humor nestes quatro dias. Irritado, cansado, com medo, desesperançoso, otimista, desesperançoso de novo. Negação, raiva, barganha, depressão, às vezes aceitação — outras vezes, volto pra raiva. Isso, nos últimos quatro dias. Imagine como tem sido no último ano.
Ontem, antes de dormir, li as últimas notícias do dia. Hoje, enquanto passava o café, ouvi as primeiras. Tenho oscilado entre momentos: tem hora que eu quero acompanhar todas as notícias possíveis, para tentar entender minimamente o mundo em que vivo, tem horas em que preciso me alienar o máximo possível, com memes e vídeos de bichinhos fofos.
Mas a sensação de que tudo está ruindo e de que o pior está à espreita raras vezes me abandona. Com você tem sido assim também?
E aí, no meio disso tudo, aqui estou eu, tentando escrever sobre teatro.
Há pouco mais de um ano, eu estava com duas temporadas garantidas do meu espetáculo. Há pouco mais de um ano, a pandemia se instaurou de tal modo que teatros, centros culturais e demais espaços de convívio e aglomeração fecharam. Minhas temporadas ou foram adiadas ou caíram, e fiquei obcecado com máscaras e em desinfetar as compras, com medo de que um pacote mal higienizado de batata palha fosse me matar.
Perdi trampos. Peguei busão lotado pra ir no RH dar baixa na carteira. Amigos meus que mantiveram o trabalho, adoeceram trabalhando. Um amigo meu que é iluminador adoeceu enquanto afinava as luzes de um evento, e outra perdeu o trabalho na escola, já que tudo seria online pelo menos até o final do ano. Passei em festivais bancados com verbas emergenciais de auxílio a artistas, o que ajudou nas contas aqui em casa — mas ficar sem máscara para a transmissão sempre me deixa bolado. Tenho amigos que foram pro online e acharam massa. Tenho amigos que foram pro online e detestaram. No meio disso tudo, praticamente todo mundo que eu conheço tá zoado, cansado, sem grana.
E eu aqui, tentando escrever.
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Em 2020, artistas começaram um movimento de ocupação das plataformas online. Um pouco por inquietação artística e um tanto por necessidade financeira, se meteram nesse campo aparentemente árido.
Se propuseram a fazer o que sempre fizeram, de um jeito que nunca fizeram antes. Se meteram no online porque era onde dava pra se meter. Coisas incríveis surgiram nesse processo.
Coisas que me atravessaram mais, coisas que me atravessaram menos, mas todas incríveis em suas dimensões. Descobrir que o teatro pode se infiltrar no online, hackear ele de alguma maneira, construir poesia num campo inóspito, acho incrível. Acho deslumbrante, sempre.
Claro, não quero romantizar nada. As experiências no online andam tão fortes por aqui, diferente do que se vê na Europa, por exemplo, devido a diferenças estruturais fundamentais. Artistas estão pesquisando o online porque é o que tem pra hoje. Porque era onde dava pra arriscar uma bilheteria pra ajudar nas contas, ou era onde dava pra fazer valer as apresentações previstas no edital. Não quero romantizar. Tem muita gente sem trampo. As coisas andam caríssimas. A sensação de que está tudo ruindo e que o pior está à espreita, arreganhando os dentes, nunca abandona.
Mas me espanta o modo como, passado o choque inicial (não que outros choques não continuem vindo, diariamente), e a impressão de que o teatro seria impossível, impraticável, ele segue existindo. E segue existindo porque seguem existindo artistas de teatro. Que elaboram diferentes tipos de teatro, dialogando com diferentes estéticas, criando pontes com diversos públicos, respondendo de modos distintos a esses tempos que vivemos.
Quantos teatros são possíveis, porque artistas os tornam possíveis.
Ano passado, assisti a um encontro de educadores de museus que se chamava “a insistência em se estar junto”, ou algo assim. Era sobre como serviços educativos museais enfrentavam desafios de chegar aos públicos através do online, sem aglomeração, durante a pandemia. Acho que isso define muito do tenho visto desde 2020 — artistas insistindo em estar junto.
O que são os espetáculos online, se não a prova da insistência de elaborar a realidade, de tocar o outro, de estar junto, de construir coletivamente?
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Diogo nos perguntou o quê, deste teatro, será levado adiante?, e acho essa uma pergunta poderosíssima. O que existe nos teatros de 2020 e 2021 que já contém os teatros de 2025, 2030, 2050?
Não só em temática, ou estética, ou técnica. Mas em meios de viabilizar a produção artística, em valorização do profissional, em diálogo com públicos, em projetos de futuro, em pulsão de vida? O que está sendo aqui que vai reverberar lá?
Bom, não posso falar “deste” teatro. Nem “destes” teatros. São muitos, milhares, cada um lidando com milhares de profissionais, com milhares de públicos, sobre milhares de assuntos, criando articulações infinitas. Existem milhares de teatros.
Talvez caiba redirecionar a pergunta: o que existe no seu teatro que você quer que seja levado adiante? O que no teatro que você está vivenciando agora você não quer que seja levado adiante? O que você não quer que seja levado adiante, mas você sabe que será? O que é imprescindível no seu teatro agora? O que será imprescindível? Quem está contigo nos teus corres agora?
Do meu lado, me encho de perguntas a partir da provocação do Diogo. Em quê minha crítica está contribuindo para o agora? Quais articulações está fazendo? Quais convites ela faz? Quais pontos de encontro minha crítica instaura? Se tudo vem, pra mim, dessa insistência em estar junto, o quão junto minha crítica me coloca dos outros? O que eu aprendo, escrevendo, que eu não sabia antes? Quais corres eu fortaleço, e quem fortalece os meus? O que eu busco, quando escrevo? O que buscam, quando me leem?
Quais perguntas você se faz?
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Às vezes, bem às vezes, me pego otimista. Acho um bom sinal a gente estar fazendo e pensando teatro, se reunindo no e ao redor do teatro. Digo, um bom sinal no meio de todos os outros maus sinais, das coisas ruindo e do pior à espreita, você sabe. Existem teatros porque existem gentes fazendo teatros. E existirão gentes fazendo teatros quando não estivermos mais aqui. Existirão teatros.
Tem dias em que isso basta pra segurar minha barra e afastar o pior à espreita, fazê-lo retrair as garras e rosnar mais baixo. Tem dias que isso não é o bastante, mas hoje é.