Cena Agora Humor — O Riso Como Antídoto [semana 2]
[ este texto reflexivo se refere à segunda e última semana da programação Cena Agora Humor — O Riso Como Antídoto, promovida pelo Itaú Cultural. O Tudo, Menos Uma Crítica foi convidado a assistir a esta programação e escrever duas respostas críticas, publicadas nas semanas dos dias 1 e 8 de setembro. A programação completa do Cena Agora, bem como os textos de outros críticos, podem ser conferidas aqui ]
Castigat ridendo mores, disse Jean-Baptiste de Santeul, poeta do século XVII. A frase é comumente associada ao dramaturgo português Gil Vicente e, ainda que ele não tenha de fato proferido estas palavras, a essência do aforismo está presente na sua obra, e na de quem trabalha com o humor.
É rindo que se castigam os costumes.
Talvez seja bom nos perguntar a que estamos acostumados.
Talvez seja importante nos perguntar quem nos acostumou a isso, e de qual modo.
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Nesta segunda semana do Cena Agora Humor, paradoxalmente foi muito fácil e praticamente impossível rir. Veja, não digo que as apresentações não foram engraçadas — elas foram — mas digo que o riso que surgia vinha acompanhado de certo mal-estar, certo incômodo… vinha acompanhado da sensação de que ríamos de algo horrível.
Ríamos, inseridos em algo horrível, como resposta a ele.
Ríamos de algo horrível para sublinhar o quão horrível ele era e, daí, transformá-lo.
As cenas apresentadas se valiam do grotesco, da ironia e do duplo sentido para comentar o grotesco real com o qual nos deparamos diariamente. O absurdo distópico apresentado via Zoom tinha correspondência direta com o que vivemos atualmente.
As 10 Graças, quando dizem que o céu não é o limite para os foguetes dos bilionários, quando versam sobre a gameficação da exploração da pobreza e quando falam sobre a precarização das condições de trabalho tão glamourizada na contemporaneidade dos empreendedores, propõem um riso amargo, incrédulo, de quem olha para o hoje e ri aquela risada que também é uma bufada, como quem ri pensando “não acredito que tô vendo isso”.
“Não acredito!” é algo que podemos pensar tanto na comédia quanto na tragédia, vale frisar aqui. É o que nos vêm à mente quando somos surpreendidos pelo final da piada, ou pelas notícias do dia.
Quantas vezes você se pegou pensando “não acredito nisso” nos últimos dias? Em quantas dessas vezes você teve vontade de rir?
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É curioso o que me fez rir na proposta do Cirquinho do Revirado.
Por um segundo, vendo a cena, pensei “nossa, eles gravaram no shopping perto de casa”. Depois, me dei conta de que não, óbvio que não. Mas por um breve momento o shopping me pareceu tão identificável, são tão semelhantes, o deles e o meu, que eu achei a própria ideia de um shopping ridícula.
Você já deve ter entrado num shopping. As chances de que ele seja igual a aquele onde o Cirquinho gravou as cenas, ou a este perto de casa, são grandes. Um shopping tem corredores amplos, limpos, bem-iluminados (não devem projetar sombras, não devem ter cantos escuros, nem podem ter muita luz natural, para que as pessoas lá dentro não saibam se é dia ou noite, nem se o tempo virou — aliás, é preferível que não tenham nenhuma distração externa, para que não pensem “está tarde, preciso ir embora” ou “vai chover, melhor passar naquela loja outro dia”). Ambos os lados dos corredores são cheios de lojas que têm layouts semelhantes: entradas largas, com letreiros chamativos, e diversas prateleiras cheias de produtos ao alcance da mão.
Aliás, geralmente as lojas se repetem nos shoppings — são sempre as mesmas quatro ou cinco lojas de fast fashion, loja de brinquedos, loja de roupa de cama, loja de celulares e restaurantes que têm em absolutamente todos os shoppings. São sempre as mesmas.
Sério. Pense na última vez em que você foi em um. E pense nas vezes em que você foi em outros. Veja o que eles têm em comum e o que tem de diferente.
Pense no quão genéricos todos eles são, com seus pisos de mármore claro, limpeza impecável e corredores planejados para te fazer percorrer toda sua extensão, cheia de lojas, até poder ir ao próximo piso. Como eles projetam uma estranha sensação de familiaridade, com sua completa falta de identidade.
Shoppings são não-lugares, na definição de Marc Augé. Não são espaços de reunião nem ocupação, mas de trânsito rápido, onde indivíduos permanecem anônimos e todas suas relações são pautadas pelo consumo.
Pense em todas as pessoas entram num shopping, e quais relações se dão entre elas — clientes, atendentes, seguranças etc.
Eu venho de uma cidade onde, nos anos 2000, o rolê da galera aos finais de semana era ir ver vitrine. Imagine a vida nesta cidade-dormitório, onde nossa única oferta de lazer era pegar dois ônibus e ir no Centrão.
Pense nas pessoas cujas presenças não são bem-vindas nos shoppings. Pense em quem é seguido nos corredores por olhares desconfiados e câmeras, pense em quem é repelido por seguranças e clientes, pense nas pessoas a quem atendentes se recusam a dar atenção (“caroços”, como pessoal da loja onde eu trabalhei naquele mesmo Centrão chamava). Pense em quem sequer entra nesses prédios.
Em Júlia: Não é Fácil ter Pernas, Júlia e Palheta vagueiam pelo mundo até conseguir entrar num shopping center. Lá, espantam-se: tudo é limpo, não há miséria, há comida, todo mundo é feliz. Da mesma forma, sua presença é estranhada pelas pessoas limpas e felizes que consomem. A partir deste contraste, o Cirquinho do Revirado comenta o grotesco intrínseco a uma sociedade cujo ideal de felicidade é uma tarde de alienação vendo vitrine, com estacionamento grátis para compras acima de R$300,00.
De que modo e com qual objetivo habitamos a cidade, se cobiçamos estes não-lugares? Que sociedade criamos se desejamos este trinômio segurança/higiene/consumo e, por extensão, desejamos também a exclusão daqueles que não podem validar sua existência perante o capital?
Quem sabe, rindo da cafonagem (e do apagamento e da violência), possamos dessacralizar estes espaços, redirecionar nossos desejos e ocupar novos lugares.
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Ainda sobre cafonagens, apagamentos e violências, o Circo de SóLadies falou sobre uma moda que, embora relativamente recente, serve para fazer a manutenção de estruturas milenares de poder. Em Chá de Revelação, discorrem sobre de quais modos a sociedade pauta e formata corpos desde antes de seus nascimentos. Quão limitador é pautar pessoas, em toda sua plenitude e singularidades, a apenas dois papéis, muito bem definidos, e a todo um sistema binário, dizem em cena.
Dizer que uma pessoa é uma coisa e só poderá ser esta coisa até o fim da vida, porque assim ela foi designada ao nascer e, portanto, há uma performance de gênero a ser executada, é uma violência sem tamanho porque oblitera todas e quaisquer outras coisas que ela poderia vir a ser no futuro. A destruição dos futuros possíveis é uma violência imensa, e ganha ares ainda piores quando ela é sistêmica, ensinada de geração em geração por um aparelho imenso que inclui escola, família e colegas — um panóptico perpétuo que garante que meninos usem azul e meninas, rosa. E que meninas sejam servis. E que meninos não chorem. E que mulheres não tenham liberdade sobre seus corpos. E que homens tenham uma relação pouco saudável com violência, sexo e dificuldade em expressar sentimentos. E que mulheres ganhem menos que seus colegas homens. E que…
Isso só falando de homens e mulheres, do sistema cisgênero pautado pelo binarismo. Para aquelas pessoas que desejam fluir de um polo a outro, ou que desejam ficar em algum lugar entre ambos, ou mesmo extrapolar o binômio e existir de qualquer outra forma, as pautas ainda se somam a outras, como a de reformar um idioma que tem dificuldade em contemplar a pluralidade das pessoas que o falam, e a patologização de suas identidades em uma sociedade intolerante.
Em sua cena, SóLadies sabem rir do patético que é esse ritual cheio de balões com papel picado rosa e fumaça azul, carrinhos para eles e bonecas para elas, assim como sabem rir de quem, com todo acesso à informação, opta por manter sua visão de mundo estreita e limitada. Seu humor, inclusive, às vezes até se direciona a nós, pessoas cisgêneras na plateia: o quanto nós reforçamos ou demolimos estereótipos? O quanto nossas escolhas de palavras incluem ou alienam? O quão profundamente nós de fato estudamos este assunto, a fim de que o debate nos faça avançar enquanto sociedade?
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Se é rindo que se castigam os costumes, então é importante rir daquilo que necessita ser mudado com urgência. É importante detectar o ridículo e desidratar pelo riso o que é patético e intolerável. Nos tempos que vivemos, é importante olharmos com acuidade para temas como raça, gênero e classe, e termos as conversas sérias que estes tópicos demandam.
É importante observarmos as fraturas, os abismos, as violências que compõem o tecido social atual, e que percebamos quais mecanismos fizeram com que chegássemos até aqui, e continuam nos impulsionando para lugares que não queremos ir. E, identificando estes mecanismos, é necessário saber interrompê-los e reconfigurá-los.
Rir do sistema e, rindo, mudá-lo.
Rir e rir tão alto que outras pessoas seduzidas pelo sistema acordarão de seu transe e rirão conosco.
Rir e com o riso soprar fôlego no futuro.